O título é o mesmo dado pelo autor, o jornalista, tradutor, escritor e diplomata Berilo Vargas, um vitoriense de Alto Parnaíba cuja distância geográfica e imposta pelos anos, não o faz se afastar das imagens de nossa terra. É um privilégio ter um texto dele aqui nesse espaço simplório da gente e das causas do mais meriodonal município maranhense.
Meu caro Décio,
Você não tem razão alguma para se lembrar de mim nas horas vagas só porque sabiá cantou.
Embora filho de protagonistas históricos da saga vitoriense (biologicamente de João Vargas, adotivamente de Clóvis Vargas) estou entre aqueles rebentos de Vitória que a abandonaram numa hora difícil, seduzidos pela miragem de uma vida melhor longe do nascedouro, como se a vida em qualquer outra parte pudesse ser muito melhor do que a dos vitorienses de quatro, cinco, seis décadas atrás.
É bem verdade que nessa fase Vitória lutava com dificuldade para alimentar os filhos e parecia incapaz de garantir-lhes qualquer futuro; mas é verdade também que ao fugir de casa condenamos nossa mãe-terra à morte por inanição.
Já você, meu caro Décio, é outra história. Você é da severa estirpe dos que fincaram pé no barranco e resistiram, impedindo que nosso lírico vilarejo fosse arrastado de vez pelas águas do Parnaíba para o oceano do esquecimento. A imagem da família de Antonio Rocha Filho ficou pendurada na parede da memória como indelével fotografia drummondiana daquela Vitória do Alto Parnaíba que nossas famílias construíram tijolo por tijolo, na qual tive o privilégio de morar alguns anos, e que logo deixei para trás no passado perfeito.
Nunca fomos colegas de brincadeiras, vocês e eu, mas, como bons vizinhos de fundo de quintal, brincamos lado a lado a nossa feliz infância vitoriense de sombra e sossego. Muitas vezes, da sombra do pé de tamarindo do quintal de Clóvis, eu via vocês peraltearem nos galhos de um pé de umbu perto do muro de Rochinha (por ser o caçula, você talvez ainda não participasse dessas aventuras arborícolas). E a recíproca devia ser verdadeira: do alto do umbuzeiro, mesmo sem querer vocês certamente acompanhavam as minhas peraltices do outro lado do muro.
De lá para cá, enquanto crescíamos e nos perdíamos de vista, nossa Vitória, a original, a irreproduzível, finalmente morreu para dar lugar a Alto Parnaíba. Você há de ter testemunhado com dor no coração o lento e inexorável declínio de uma, e com apreensão e esperança o incerto e igualmente vagaroso surgimento da outra. A vila primitiva, que por lealdade sentimental chamo de Vitória, tinha sido construída à beira do Parnaíba e de seus múltiplos afluentes e subafluentes por criadores de gado, classe de gente para a qual o mundo gira em torno de uma boa aguada, e morreu quando os cursos de água da região se tornaram economicamente irrelevantes. A parte nova, que por clareza sentimental chamo de Alto Parnaíba, surgiu pouco mais acima com vocação decididamente agrícola, de costas para o rio, já sentada num trator e semeando arroz e soja em lugares altos onde jamais nos ocorrera plantar sequer capim-de-burro.
Você, é claro, soube passar de Vitória para Alto Parnaíba, quanto mais não seja por estar presente durante o processo de replicação. Eu, que apenas acompanhei de longe, fui incapaz de dar o pulo. Fiquei, por assim dizer, empacado na lama vermelha do rio, e minha Vitória é hoje um cemitério adormecido sob as barbas brancas do Velho Monge, onde os personagens de um maravilhoso estilo de vida estão enterrados em espírito.
Numa visita que fiz em 2006, confirmei que não há possibilidade de ressurreição para as cidades mortas. O máximo que se pode esperar é a persistência temporária de uma auréola das ruínas, espécie de ectoplasma coletivo também condenado a desmanchar-se no ar quando o agreste reclamar os seus direitos. Sentado na Praça do Mercado, onde morei quando o logradouro ainda era apenas a parte alta da velha Vitória, tentei ouvir adoráveis barulhos de outrora, mas não tive êxito: uma nova e potente realidade sonora impede a floração espontânea das vozes naturais.
“Que barulhos? De passarinho na janela, de vento nas árvores, de chuva nos telhados, de galo nos quintais, de jumentos que zurravam, subitamente sobressaltados pela alegria animal de estarem vivos. De escarro de um fumante inveterado que passava ao pé do muro. Barulho da voz alterada da mãe que ralhava com o filho lá para dentro. Barulho das gargalhadas sob a mamorana de Eurípides. Barulho de alunos que saíam do Vitorino Freire passarinhando em alegre revoada. Barulho da animação de famílias que começavam o dia junto ao fogão de lenha e em volta da mesa do café com cuscuz e beiju, e terminavam conversando em surdina na porta da rua, à boca da noite, os mais idosos estendidos nas cadeiras preguiçosas, a pele do rosto e dos braços manchada de sol e velhice, alguns já de pijama e chinelos, vivendo na companhia de filhos e netos o suave anoitecer dos últimos anos”.
Na cidade baixa, percorri sozinho os restos mortais da rua onde nasci, e que hoje leva o nome de meu avô paterno, João Francisco de Vargas, num passeio verdadeiramente além-túmulo, onde tudo era fantasmagórico, e eu mesmo não tive muita certeza se ainda era de carne e osso.
“Na beira do rio, a velha Vitória é um cemitério de casas destroçadas, de ruas por onde um dia tramaram seus passos figuras venerandas como Adolfo, Antunim Rocha, Mitim, João Vargas, Luiz Amaral, Padre Cirilo, Titizinha, Aderson, Dona Ifigênia, Tia Raquel e tantos outros, e que já não levam a nenhuma das moradas hospitaleiras de antigamente. Na claridade do dia, é quase uma cidade cenográfica, só paredes externas, portas e janelas sem folhas, salas e quartos sem paredes, beirais sem telhados. Mas quando a noite desce todo o velho conjunto urbano é outra coisa, o lado de dentro dessa outra coisa. As ruas esboroadas se convertem em labirintos de suspiros, e todas as saudades convergem, em procissão, para as esquinas. O passado retorna, como se não tivesse passado, e quem transita por ali, solitário e atento, volta a ouvir os risos, as vozes, o tinir de louças e talheres lá dentro, à mesa de jantar. Na calçada, junto à porta da rua, cadeiras invisíveis conversam em surdina assuntos de antigamente. E de súbito, vindos não se sabe de onde, erguem-se passos de pessoas queridas longamente ausentes, passos que só deixaremos de ouvir quando os nossos também se juntarem ao rumor multitudinário da cidade inteira que se foi”.
A verdade, meu caro Décio, é que nós vitorienses _ os que ficaram, os que partiram _ somos inundados de boas recordações sempre que ouvimos o canto gonçalvino do sabiá. Seu Blog, onde cheguei pela mão do acaso, ao dobrar uma esquina da Internet, me fez escutar melodias antigas, que o ouvido jamais esquece. Mesmo quando trata de urgentes assuntos alto-parnaibanos do momento, ele trai as respeitáveis origens vitorienses do autor, o que talvez explique a forte ressonância de seus textos nos desvãos da memória de um leitor vitoriense sentado a milhares de quilômetros de distância, num canto de apartamento no Rio de Janeiro, à beira de um oceano que ainda não é o do esquecimento.
Com o abraço amigo do
Berilo Vargas
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário