Um dos personagens folclóricos mais marcantes de minha terra se chamava Cícero Pereira dos Santos. Pelo garboso nome, praticamente ninguém se recorda de quem se trata. Se eu me referi a Lulu Saliva, lá das bandas do Escalvado, filho de Mané José, um treiteiro (malandro na linguagem alto-parnaibana) sem malícia e sem crimes, com certeza se lembrará com um sorriso nos lábios.
Lulu já morreu, deixando mais triste nossa cidade. Era esperto nas respostas, gostava de posar de rico e valente, dava uns tombos de poucos trocados nos mais incautos e detinha uma rara inteligência em um físico deficiente de nascença. Nascido e criado nas margens do rio Parnaíba, onde a futura cidade de Alto Parnaíba teve sua primeira povoação, Luluzinho teve terras e perdeu tudo na ingenuidade do sertanejo que, quando metido a sabido, infelizmente perde o pouco que possui para os verdadeiramente espertos - os de paletó e gravata.
Mas, vamos voltar ao Lulu que mais interessa, de jeito traquino e lábia prodigiosa, daí o apelido de Lulu Saliva, bem posto por meus conterrâneos.
Lulu sabia ler e escrever, alfabetizado (com bela caligrafia) pela antiga e já esquecida (pelos poderes locais) professora municipal Conceição Lopes. Mesmo durante o regime militar, as eleições municipais não foram suspensas, havendo disputas acirradas entre os candidatos do MDB e Arena, os dois únicos partidos existentes e permitidos pela ditadura de 1964. 15 de novembro era o dia da eleição para prefeito e vereador. Corre o ano de 1976. A eleição se aproxima e as famílias tradicionais da política se digladiam; ofensas de lado a lado, dinheirama solta. Desudedith Lopes e Renan Soares disputam o pleito principal. Durante o longo dia da votação, os cabos eleitorais de ambos os candidatos correm atrás dos eleitores. Lulu é o mais arisco e o que mais explora - uma botina; uma muda de roupa (completa); um relógio; dez cruzeiros, enfim, tudo o que é possível e impossível dentro daquela realidade provinciana, Luluzinho pede incansável e sutilmente aos candidatos, já compremetido desde o início da campanha com cada qual, mesmo só possuindo o próprio voto. O horário do encerramento da votação se aproxima e nada de Cícero Pereira dos Santos exercer o direito ao voto. Um cabo eleitoral, já dando sinais de fadiga, cansaço e irritação, encontra Lulu andando ligeiro na praça principal e o segura pelo braço: você agora não me escapa, vamos votar. Sem qualquer inquietação, tranquilo e sereno, pouco se importando se o mundo se acabasse e nem um pouco acreditando em um lugar melhor com o resultado da eleição, Lulu disparou: ainda faltam vinte minutos. Só vou votar no último segundo, ou então perco o prestígio.
Com razão o saudoso Lulu. Terminada a eleição, o eleitor é esquecido, as promessas ficam no vazio, o prestígio desaparece O eleitorado de Alto Parnaíba continua desprestiado como d'antes, me dando uma vontade danada de sequer votar em outubro próximo.
segunda-feira, 29 de março de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Colega Décio Amaral,
ResponderExcluirUma delícia de crônica com Lulu Saliva. Na minha querida Matões, também lá nossos Salivas.
Paulo Cruz Pereira