segunda-feira, 26 de março de 2012

O RIO NOTURNO E ENCANTADO DE BERILO VARGAS E CARMONA ROCHA

RIO NOTURNO
Berilo Vilaça Vargas

Se eu fosse o astrônomo que não sou, saberia que nome dar à galáxia que nunca descobrirei: Carmona. Minha nebulosa, como a Via Láctea, teria até apelidos pitorescos, como Caminho de Carmona, Estrada de Carmona, Carreirão de Carmona.
Em sua versão terrestre, Carmona é um parente que mal conheci, mais um nome na constelação da grande família vitoriense do que propriamente uma pessoa, uma individualidade. Ou era assim até aquela noite, já distante, em que eu vagava pelas ruas e fui convidado para um dedo de prosa na calçada de Ritinha Rocha. Puxei uma cadeira e, no pequeno grupo que jogava conversa fora, reconheci o Carmona, sob a penumbra do chapéu que fazia parte de sua indumentária, talvez de sua identidade.

Carmona Rocha, falecido em 04/07/2004, e o neto Bruno, que veio a morrer em plena juventude, de acidente de motocicleta em Gurupi/TO, aos 22 anos. Foto: arquivo familiar.
A iluminação pública, pelo menos naquele trecho da memória, já estava apagada, e a cidade ficara entregue aos tropeços e incertezas de uma estrelada, bilaquiana noite sertaneja. De vez em quando, passava o vulto de uma vaca ou de um jegue, resfolegando, estalando as juntas.


De repente, no súbito vazio de uma pausa na conversa, quando a presença da noite ficou mais palpável, Carmona olhou para cima e fez uma declaração inesperada:
– Noites como esta me fazem lembrar o tempo em que eu transportava gado de balsa pelo Parnaíba.


Qualquer um que erguesse os olhos veria, pálido de espanto, a Via Láctea cintilando como um pálio aberto por cima dos morros e quintais. De uma roça próxima vinha o sussurro musical de palmas de buriti. Cães ladravam nos quintais, portas batiam, uma criança chorava na noite.

Os outros ouvintes calaram; deviam estar habituados às reminiscências fluviais do Carmona. Eu, sempre alheio aos assuntos, sempre marginal nas rodas de convívio, fui o único a manifestar surpresa.
– Você descia o rio com balsa de boi?


Estimulado por minha curiosidade, Carmona contou que numa dessas antigas viagens tinha levado uma boiada de meu pai Clóvis para os mercados do Piauí.
– Quando anoitecia, antes de fazer uma parada, eu me deitava na balsa e ficava olhando o céu. Pode parecer maluquice, mas eu imaginava que em vez de descer o Parnaíba eu estava lá em cima, deslizando na balsa pelo Carreirão de Santiago.

A metamorfose foi instantânea. O Carmona, que não era nada, passou a ser tudo _ indivíduo, herói, ídolo. Ouvi o resto da história já com humildade, com reverência. Eu, que me julgava com direito ao honesto título de barranqueiro do Parnaíba, mesmo sem jamais ter pescado em suas águas barrentas, é que de súbito já não era ninguém. Barranqueiro do Parnaíba era aquele homem escondido na dupla sombra da noite e do chapéu, que discorria sobre o Parnaíba com eloquência virgiliana, que conhecia o grande rio como quem conhece um parente próximo, um irmão, o próprio pai: alguém que lutara com ele, que o medira quase da nascente à foz, palmo a palmo, com sua paciência, com sua coragem solitária, com seu lirismo sossegado e mudo.

Ainda fiquei uma ou duas semanas de férias na casa paterna, andando pela beira do Parnaíba, contando os dias, contemplando as noites e vendo passar, lá no alto, luminoso e eterno, inesgotavelmente brilhante, o outro rio por onde navegara o Carmona em sua balsa cósmica.


Berilo Vargas é um alto-parnaibano do mundo, um dos grandes tradutores brasileiros, além de diplomata, professor universitário, jornalista, cronista, contista e escritor radicado no Rio de Janeiro, e sua homenagem ao meu tio Manoel Carmona de Araújo Rocha, que nos foi repassada pelo escritor Lindolpho do Amaral Almeida, outro grande nome das letras nascido em Alto Parnaíba, é uma das mais belas crônicas que já li, retratando um período de Ouro de nossa antiga e sempre viva Vitória do Alto Parnaíba.

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