Os Quincas desafiam a nossa imaginação a partir da personagem maravilhosa criada pelo baiano Jorge Amado. O Quincas Berro D'Água do consagrado romancista de Ilhéus, ficou imortalizado e simboliza os boêmios, os poetas e filósofos das ruas, os amantes da vida, irreverentes, porém, acima de tudo, felizes.
O meu Quincas foi real, de carne e osso, que talvez não tenha lido o livro de Jorge Amado, mas que em muito se assemelhava ao personagem de ficção, ao mesmo tempo que possuia uma ingenuidade irritante aos olhos dos arrogantes, porém uma característica primorosa e rara de quem não cultivava maldades no coração e nem raivas a enlamear a alma.
Cresci convivendo com o Quincas na casa dos meus pais, em Alto Parnaíba e mais tarde em São Luís, uma pessoa da família, do nosso lar, amigo sincero de todos nós, especialmente do meu saudoso irmão e colega de advocacia, Plínio, a quem o Quincas tinha por ídolo provavelmente abaixo apenas de Jesus Cristo e de seus pais.
Joaquim Nonato Limeira de Oliveira nasceu na zona rural do município sul-maranhense de Alto Parnaíba, na Fazenda Correntão, de propriedade de seus pais, José Pereira de Oliveira, o Zé Correntão, e dona Maria Alice Limeira de Oliveira, em 08 de abril de 1945, gêmeo de Raimundo Nonato Limeira de Oliveira e também irmão de Terezinha, Maria de Jesus e Eulina de Jesus, e faleceu em 26 de janeiro de 2006, na cidade de Palmas/TO, onde se encontrava em tratamento de saúde.
O sertanejo Zé Correntão, que herdou como apelido o nome da própria fazenda, era filho único e ficou com um rico legado de terras, gado bovino, plantações de cana de açúcar e engenho para o fabrico de rapaduras e aguardente (cachaça). De intuição privilegiada e vislumbrando uma vida melhor para a prole, deixou a Fazenda Correntão e comprou casa na cidade, aqui colocando os filhos, especialmente os gêmeos e a caçula, para estudarem. Quincas, com mais dificuldade de aprendizado do que o irmão gêmeo Nonato, conseguiu concluir o antigo primeiro grau no Ginásio Alto-parnaibano, antes passando pelo tradicional grupo escolar Vitorino Freire, onde já demonstrava a sua admiração incontida pelos mestres locais, tais como os professores Maria de Lourdes Gouveia Rocha, Marideth Bezerra do Amaral, Árison Mardem do Amaral, Maria Albaniza do Amaral Mascarenhas, Padres André e João Audizio, Eurídice Formiga Rocha, Émerson Leitão do Amaral, Antonia Galvão Brito, Maria Madalena Gomes Amaral, Carmem do Amaral Pacheco, dentre tantos outros, a quem cultivou a idolatria e o respeito até o fim.
Em meados da década de 1970 e por incentivo de Plínio, Quincas foi morar, trabalhar e estudar na capital maranhense, passando a residir em um pensionato com meus irmãos, primos e amigos; em São Luís, ao mesmo tempo em que cursava o segundo grau à noite, foi operário - inclusive servente de pedreiro na construção da ponte Bandeira Tribuzzi -, comerciário e servidor público estadual, que exerceu enquanto teve vida. Ao concluir o curso de técnico em contabilidade e após algumas tetantivas, obteve o que poucos conseguem, entrar em universidade pública e sem cotas, no curso de história da Universidade Federal do Maranhão, que o destempero psíquico-mental não permitiu a almejada conclusão do terceiro grau.
Após vários anos longe de Alto Parnaíba, Quincas retornou e voltou a morar e a cuidar dos pais, idosos, até o falecimento destes, e n'uma viagem em busca de tratamento para um acentuado problema mental, faleceu, de causa não totalmente explicada, quando se encontrava em casa de parentes no vizinho estado do Tocantins, sendo o corpo sepultado em nosso cemitério público.
Quincas foi discriminado e ao mesmo, invejado, pois detinha algo que pouca gente tem, principalmente os prepotentes que se consideram acima do bem e do mal: coragem, lealdade, altivez, gratidão, amor pelo berço natal, percepção cívica das coisas. Sem medo, discursando na calada das noites ou à luz clara do sol, atacava os poderosos, principalmente políticos e mais precisamente os prefeitos de plantão, e desfilava os erros, as mazelas e as promiscuidades do poder, da vida pública e dos governantes, e assim como o Dr. Ulysses Guimarães, sem ao certo saber a razão, Joaquim Limeira tinha nojo dos corruptos.
O seu amor à Fazenda Correntão e adjacências era incomparável e isso marcou os últimos anos de vida, jamais se conformando, mesmo respeitando a decisão paterna (para ele, superior e imutável), o fato de o pai haver vendido a velha propriedade, um lugar bonito, cheio de baixões e de água farta, com terras férteis, cuja menenice e no exercício da agricultura de subsistência - o machado, o facão, a foice e a enxada eram os instumentos utilizados por Quincas como lavrador em parte de sua existência e ainda o é por centenas de deserdados da sorte e de cidadania em meu município -, o meu fraterno amigo ali vivenciou e cantou em prosas e versos (sem rimas) até o desencarne, e com certeza após este, pela imortalidade da alma, no Correntão revendo tudo o que deixou para trás.
Quincas era bom. A sua rebeldia não ofendia os bons como ele; dizia verdades, que nem sempre agradam a todos. Deixou pérolas, como aquela em que um filho apaixonado pelo genitor apelava ao nosso poeta para que também elogiasse o pai, que fora político; sem titubear e do alto de um banquinho às 2 da matina, Quincas, em uma frase, relembrou o que considerava a única obra do respeitável ancião... o dedicado filho não gostou do que ouviu (é impublicável).
Em outra ocasião, agredido por um político descontente com as palavras inflamadas do orador contra si, após levar uma chicotada nas costas - o dito cujo ainda não aceitou o fim oficial da escravidão no Brasil -, correndo em disparada, ainda conseguiu virar-se e gritar para que todos o ouvissem - vejam minha gente, um vereador batendo n'um lavrador!
Próximo à morte e no bar do Ivan Filho, antigo bar Victória do Ivan Brito, na beira do Parnaíba, tendo o Velho Monge com suas barbas brancas de testemunho, o orador Quincas, acusado graciosamente por outro inflamado tribuno de ter cometido certos pecados no passado, reagiu de dedo em riste: se um saco de arroz for droga; se um saco de feijão de droga; se um saco de milho for droga, então estou perpetuado na droga. Era a digna reação do lavrador que, de vício, apenas a bebida, que o deixava ainda mais eufórico, alegre e, como o Berro d'Água de Jorge Amado, falador e discursador sem papas na língua.
O Quincas gostava do curso que não conseguira concluir e ao modo de sua peculiar interpretação, confundia as estações e chegava a transformar o império romano em um carnaval carioca - não tão díspare, pois as nossas escolas de samba se baseiam muito nos trajes maravilhosamente libidionosos de nossos predecessores. O nosso poeta vacilava, mas às avessas terminava por acertar.
Eu costumava tratá-lo apenas por "poeta", pois de fato falava a voz das ruas, ia ao encontro do povo, gostava de gente, protestava sem temor, não bajulava e era incapaz de mentir; doido para namorar belas mulheres - quem não o é -, chegava a ser ridicularizado por idiotas que se consideravam inteligentes, mas em sua mente realmente elas o queriam e isso o acalentava. Como Vinícius de Moraes, o poetinha, o nosso poeta Joaquim Limeira também preferia a beleza - que as feias me perdoem mas a beleza é fundamental.
Extremamente respeitador e não profano ou promíscuo, Quincas, certa feita estava deitado em um sofá na casa de minha tia Ritinha Rocha, após tomar umas outras e outras, apaixonadíssimo na época por uma belíssima morena, a dona da casa, preocupada com os gemidos do costumeiro hóspede, indagou-lhe se queria um chá. Levantando um pouco a cabeça e abrindo um único olho, encarando a idosa senhora, o apaixonado Limeira respondeu de pronto: só se for um chazinho da... (e deu o nome das razões do pileque).
Portanto, este era o Quincas; muito mais ele deixou construído e dito; amante da palavra, nasceu rico e morreu pobre; gabava da amizade íntima do casal João Castelo e Gardênia Gonçalves, inclusive tendo aquele, governador do Maranhão, o nomeado para o serviço público. Os invejosos e impiedosos desdenhavam de Limeira. Foi preciso a morte para que, em plena reunião na Câmara Municipal de Alto Parnaíba, em 2006, o atual prefeito de São Luís e sua esposa, ex-prefeita da capital, declarassem em viva voz, chorando, o seu carinho, a sua amizade, a sua saudade e o seu respeito por Joaquim Nonato Limeira de Oliveira, cuja natureza não permitiu certos atributos, como o físico, mas que garantiu a existência de umas melhores figuras humanas que conheci.
quarta-feira, 29 de julho de 2009
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.Dr. Décio, mostra nessa maravilhosa e nostálgica Cronica sobre nosso Quincas, Que álem de mestre do Direito é um Psicólogo nato. Profundo Conhecedor da AlmaHumana.
ResponderExcluirQuincas era (é) uma Figura Humana Comovente: Amigo, Grato (raros o são),Solidário como poucos(sua éstadia em são luis atesta essa áfirmação) muitos Contérraneos são testemunhas, inclusive Eu.
Décio Li seu Artigo chorando... Deus te Abenç
belo artigo Tio Decio... realmente é de emocionar... sem palavras !
ResponderExcluirPedro Henrique Formiga Rocha Amaral
Em muitos momentos de minha vida senti tristeza quando chegou a hora da morte de pessoas que tanto admirava.
ResponderExcluirFoi assim quando morreu meus tios: Rochinha, Corintho, Benhur,Marconi, meu querido pai,meus primos Júnior Gordo, Humberto, Plínio, Benhurzinho, o sobrinho Bruno, nossos amigos Daniel Filho (esse irmão), Beijoca, Djalma Quincas e muito outros parentes e amigos que se formos cita-los levariamos dias, semanas, meses ... A família Rocha por ser simples e humilde só tem amigos. Quincas,merece essa homenagem não só sua mas de todos nós. parabéns!
Rafael Rocha_
ResponderExcluirParabéns pelo artigo sobre quincas tio Décio.
As lembranças que vieram ao ler esse artigo escrito pelo Sr. me faz lembrar de muitas "aventuras" que tive o prazer de ter com nosso Quincas.
Ele nos deixou,em carne,pois nos acompanha onde estamos,reunidos (amigos) está sempre presente e sempre vai está.Isso porque só nos deixou lembranças boas.E é isso q faz com as pessoas sejam lembradas,as coisas boas q nos deixam.
Então,que nosso GRANDE AMIGO Quincas,continui sempre nos ajudando de onde estiver.(sei que está em lugar bom,pois o caração que tinha era especial,e isso merece um lugarzinho bom la em cima pra ele,)
PARABÉNS TIO!!